é difícil viver A dança.
Fala-se bastante como é difícil viver de dança, mas pouco se fala sobre como é difícil viver a dança.
Viver a dança é um pacto silencioso com o esforço, com o cansaço, com a dor – física, emocional, existencial. Nos últimos dias, vi amigos interromperem jornadas lindas para cuidar de seus corpos machucados. Lesões que não doem só no corpo, mas na alma de quem sempre esteve em movimento. É impossível não lembrar da minha própria história – da vez em que precisei parar, da lesão que me tirou a dança por sete anos. Sete.
Sete anos tentando reaprender a viver sem aquilo que me dava sentido, tentando encontrar novos ritmos numa rotina que já não cabia em mim.
Viver a dança é um exercício constante de entrega e renúncia. É abdicar de aniversários, de fins de semana, de conforto, de estabilidade. É seguir, mesmo quando o corpo grita, mesmo quando o espelho é cruel, mesmo quando o mundo parece não perceber o tamanho do que fazemos. Não somos uma classe valorizada. Não somos, muitas vezes, sequer reconhecidos.
Mesmo afastada dos palcos, mesmo com o corpo em pausa, eu segui vivendo a dança. Porque ela não mora só nos músculos, no giro, no salto ou na ponta perfeita. Ela mora no olhar de quem ensina, na escuta de quem dirige, nas palavras de quem escreve. A dança seguiu em mim como memória, como linguagem, como presença constante – mesmo na ausência do gesto.
Como professora, encontrei novas formas de me mover através dos outros. Cada aluno que passava pela sala de aula levava um pedaço do que eu não podia mais fazer, mas ainda podia sentir. Como diretora, vi a dança ganhar corpo em outras pessoas, com outras histórias, outros limites, outras potências. E como escritora, descobri que a dança também cabe no silêncio entre uma palavra e outra, na pausa do parágrafo, no respiro da vírgula.
Mas nada disso diminui o peso que é viver a dança quando ela nos exige mais do que temos. Quando ela fere. Quando ela decepciona. Quando ela cala. Porque por trás da beleza que entregamos ao mundo há uma rotina marcada por dores, renúncias e inseguranças. E é aí que mora a parte mais difícil de tudo isso: a gente segue amando, mesmo quando dói.
E talvez o mais duro de tudo seja perceber que, mesmo com toda essa entrega – física, emocional, simbólica – o mercado da dança ainda não reconhece, com a devida dignidade, o valor do nosso trabalho.
A dança é exigente demais para o retorno que dá. Não estou falando aqui do valor imaterial, que sabemos ser imenso, mas sim do valor concreto: remuneração, condições de trabalho, estrutura, reconhecimento institucional. Somos uma classe que forma artistas desde a infância, que educa corpos e mentes, que move culturas e públicos… e ainda assim, lutamos para cobrar o mínimo justo por uma aula, por uma direção, por um espetáculo.
Enquanto vemos outras áreas artísticas conseguirem – com muito esforço – ocupar espaços no mercado e conquistar reconhecimento profissional, a dança segue, em muitos contextos, como um “luxo” mal compreendido.
Ainda se espera que façamos por amor. Ainda se questiona nosso valor. Ainda se acha que a arte pode ser paga com aplausos.
E o pior: muitas vezes, somos nós mesmos, da área, que nos submetemos a essa lógica. Aceitamos pouco, normalizamos abusos, nos calamos diante das estruturas que nos exploram. Porque amamos tanto o que fazemos, que acabamos confundindo amor com aceitação. E amor não deve ser sinônimo de sacrifício sem retorno.
É por isso que resistir também faz parte da dança. Resistimos cada vez que dizemos “não” ao que nos desvaloriza. Cada vez que exigimos ser pagos com justiça, que educamos o público, que fortalecemos nossa rede, que reconhecemos o trabalho uns dos outros. Resistimos quando nos organizamos como classe, quando conversamos abertamente sobre o que nos fere, quando deixamos de tratar o sofrimento como uma espécie de medalha silenciosa.
E seguimos. Porque apesar de tudo, a dança ainda pulsa forte dentro da gente.
Seguimos porque acreditamos que é possível construir um mercado mais saudável, mais sustentável, mais ético. Um mercado no qual artistas não precisem escolher entre viver da dança OU viver a dança — para que ambos os caminhos sejam possíveis e dignos. No qual o corpo do artista seja respeitado. No qual haja espaço para pausa, para cuidado, para diversidade, para novas formas de existir na arte.
É difícil, sim. É cansativo, muitas vezes. Mas não é impossível.
A dança me deu tudo o que sou. E mesmo quando me tirou o movimento, não tirou meu pertencimento. Eu sigo dançando — com as palavras, com as ideias, com os projetos, com os afetos. E acredito que, se continuarmos falando, criando, resistindo e nos apoiando, um dia esse espaço que habitamos com tanto amor também saberá nos amar de volta.
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